A Arte de Reduzir as Cabeças: o Crepúsculo dos Grandes Outros e a Barbárie do Sujeito Narcísico
- carlospessegatti
- 10 de out.
- 8 min de leitura

Como a Modernidade decapitou suas referências simbólicas e inaugurou o império do vazio
“Vivemos um tempo em que o homem não acredita mais em nada — a não ser em si mesmo, o que é o mesmo que dizer: em nada.”— Dany-Robert Dufour
1. O diagnóstico de Dufour: a redução simbólica e o novo selvagem do capitalismo
Em A Arte de Reduzir as Cabeças (2003), o filósofo francês Dany-Robert Dufour propõe uma leitura aguda do colapso simbólico da civilização ocidental.
Inspirado por Freud, Lacan e Marx, ele argumenta que o mundo contemporâneo vive uma regressão antropológica: a dissolução das grandes instâncias simbólicas — os “Grandes Outros” — que estruturavam a vida psíquica e social do homem moderno.
O título evoca uma metáfora contundente: reduzir as cabeças significa reduzir as instâncias simbólicas que davam sentido, orientação e limite ao desejo humano. Na ausência desses grandes referenciais, emerge o sujeito neoliberal, atomizado, performático e narcísico — uma figura que acredita poder tudo, mas que no fundo vive esvaziada de sentido.
2. O conceito lacaniano de “Grande Outro”
Em Lacan, o Grande Outro (A) é a instância simbólica que garante a existência do sentido. É o lugar da Lei, da linguagem e da cultura; aquilo que dá consistência ao mundo e faz com que o sujeito não se perca no caos do desejo. O Grande Outro pode se manifestar como Deus, a Razão, o Estado, a Natureza — em suma, qualquer referência exterior que ordena e limita o eu.
Dufour rastreia ao longo da história as grandes figuras desse Outro, mostrando como cada época construiu e, depois, destruiu seu próprio pilar simbólico. A modernidade, ao matar cada um deles, foi decapitando as cabeças simbólicas da civilização — até restar apenas o indivíduo consumidor, desprovido de transcendência.
3. Os Grandes Outros ao longo da história
O primeiro Grande Outro: Deus (a Idade Teológica)
“O sentido vinha de cima, e o homem ajoelhava-se diante da palavra divina.” — Dufour
Durante a Idade Média e o longo domínio teológico, o Grande Outro era Deus. A Lei, a moral e o sentido da vida emanavam do transcendente. O sujeito vivia submisso à ordem divina: o Bem e o Mal tinham uma origem exterior e incontestável. O homem se compreendia como criatura e não como centro do mundo.
Contudo, com o Renascimento e a Revolução Científica, o homem começou a duvidar dessa transcendência. Deus morreu — como diria Nietzsche — e com Ele desmoronou a primeira grande cabeça simbólica da humanidade.
O segundo Grande Outro: a Razão (a Idade das Luzes)
“Substituímos Deus pela Razão — e acreditamos ter encontrado uma nova divindade.”
Com o Iluminismo, o sentido foi transferido do céu para a Terra:a Razão tornou-se o novo Grande Outro. O homem iluminista acreditava na ordem racional do universo, na ciência e no progresso. O “homem autônomo” de Kant é o filho legítimo dessa fé na razão universal.
Mas Dufour mostra que essa racionalidade também se corrompeu:a razão, ao se tornar instrumental, deu origem à técnica sem ética, ao cálculo sem consciência. O segundo Grande Outro começou a ruir quando a razão passou a servir não à emancipação, mas à dominação e à mercantilização da vida.
O terceiro Grande Outro: o Estado e a Ideologia (a Idade das Revoluções)
“O Outro agora é o Povo, a Nação, o Partido — a encarnação secular do absoluto.”
Nos séculos XIX e XX, com o avanço do capitalismo e das ideologias políticas, o Grande Outro assumiu formas novas: o Estado, a Nação, a Revolução. O sujeito passou a se reconhecer através de identidades coletivas: o cidadão, o operário, o patriota.
Para Dufour, esse período corresponde à fase moderna das grandes narrativas — os projetos totalizantes que pretendiam dar sentido à história.Mas a queda do Muro de Berlim, o fracasso das utopias e o triunfo do mercado global assinalam o colapso deste terceiro Outro. A ideologia sucumbiu diante do fetiche da mercadoria.
O quarto Grande Outro: o Mercado (a Idade Neoliberal)
“O mercado fala, o mercado quer, o mercado reage — ele se tornou o novo Deus invisível.”
Aqui está o diagnóstico mais contundente de Dufour: o mercado neoliberal transformou-se no novo e último Grande Outro. Ele não exige fé nem moral — apenas performance, produtividade e consumo. A lógica simbólica do sujeito foi substituída por uma lógica mercantil e publicitária, onde o desejo não é mais reprimido, mas continuamente excitado e explorado.
O capitalismo contemporâneo opera pela dissolução de todos os laços simbólicos, promovendo um sujeito infantilizado, seduzido e permanentemente insatisfeito. O sujeito neoliberal é, paradoxalmente, “livre de tudo” — inclusive de si mesmo.
4. O novo selvagem e o desaparecimento do simbólico
“Sem o Outro, o sujeito retorna ao estado de natureza — mas agora armado com a técnica.”
Dufour chama de “novo selvagem” o indivíduo pós-moderno que, ao recusar toda autoridade simbólica, acredita ser completamente autônomo. Esse sujeito não reconhece mais limites, nem transcendência, nem alteridade. O outro humano é percebido apenas como competidor ou instrumento.
Ao reduzir as cabeças simbólicas, a sociedade contemporânea regride a um estado de barbárie sofisticada — tecnológica, midiática e narcísica.A selvageria não vem mais da floresta, mas da tela e do algoritmo.
5. Repensar o simbólico na era digital
“É preciso reinventar o Outro, ou desapareceremos sob o peso do nosso próprio vazio.”
Dufour encerra seu diagnóstico com um apelo ético e filosófico:reconstruir novos vínculos simbólicos — não mais transcendentes, mas solidários, críticos e humanos.Reinventar o comum em um mundo saturado de simulacros. Em tempos de inteligência artificial, metaversos e realidades híbridas, essa lição ressoa com uma urgência ainda maior.
A civilização só poderá continuar se o humano reencontrar o sentido de ser mais do que um consumidor — se souber novamente olhar para o céu, não para buscar deuses, mas para reencontrar a dimensão simbólica que nos faz humanos.
“Não é a técnica que nos destruirá, mas a ausência de sentido que ela amplifica.”— Dany-Robert Dufour
Dufour, Marx e Deleuze — a crítica do sujeito no império do mercado
O fetichismo da mercadoria e o eclipse do simbólico
“No mundo das mercadorias, as relações entre homens assumem a forma fantasmagórica de relações entre coisas.”— Karl Marx, O Capital
Dufour herda de Marx o diagnóstico do fetichismo da mercadoria, mas o traduz para o terreno da subjetividade e da cultura simbólica. Se, para Marx, o capitalismo transforma o trabalho humano em valor de troca — apagando a relação entre pessoas e substituindo-a por relações entre coisas —, para Dufour o mesmo processo ocorre no nível do desejo e da linguagem.
A mercadoria, agora, coloniza o inconsciente. Ela se infiltra nas imagens, nos signos e nas narrativas que organizam o sentido do mundo. O Grande Outro — outrora Deus, Razão ou Estado — foi substituído por uma instância mais difusa e impessoal: o mercado como estrutura simbólica totalizante. O “mercado fala”, “o mercado reage” — expressões que denunciam a nova religião secular da economia.
No capitalismo tardio, não há mais transcendência, mas tampouco liberdade: há apenas circulação infinita de signos e desejos. A publicidade cumpre o papel de uma nova teologia, onde o consumo substitui o sacramento. É nesse ponto que Dufour radicaliza Marx: a alienação já não é apenas material, é também psíquica e simbólica.
Deleuze e o sujeito do controle
“As sociedades de controle não funcionam mais por confinamento, mas por modulação contínua.”— Gilles Deleuze, Post-scriptum sobre as sociedades de controle
Ao lado do diagnóstico marxiano, Dufour dialoga implicitamente com Deleuze, sobretudo no que concerne à mutação antropológica das sociedades pós-disciplinares. Se o sujeito da modernidade era formado em instituições de confinamento (família, escola, fábrica, prisão), o sujeito contemporâneo é moldado por fluxos digitais, redes e sistemas de controle invisível.
Dufour vê na cultura neoliberal o triunfo do sujeito de performance, permanentemente estimulado a se autogerir, se vender e se consumir. É o mesmo “homem modulável” de Deleuze — aquele que não precisa mais de grades, porque se tornou o seu próprio carcereiro.
Enquanto Deleuze analisa o mecanismo técnico e biopolítico do controle, Dufour investiga sua dimensão simbólica: o modo como o próprio desejo é reconfigurado por esse regime. Ambos descrevem, de ângulos distintos, a mesma mutação civilizatória — a substituição do Outro transcendental por um circuito imanente de signos, fluxos e algoritmos.
O sujeito neoliberal: síntese e ruína
“O novo homem é ao mesmo tempo seu próprio mestre e seu próprio escravo.” — Dufour
A partir de Marx e Deleuze, Dufour constrói a figura paradigmática do sujeito neoliberal: autônomo em aparência, mas submetido a uma nova servidão voluntária. Esse sujeito acredita ter conquistado a liberdade plena — ao mesmo tempo em que se dissolve num espaço de controle difuso e numa linguagem sem transcendência.
Marx já havia intuído que o capitalismo tende a devorar todas as formas de valor que não possam ser convertidas em mercadoria. Dufour mostra que essa voracidade chegou ao último território possível: o da própria subjetividade.
Agora, o que é explorado não é apenas o trabalho — mas a alma, o desejo, o imaginário.
Epílogo complementar
“Depois de Marx e depois de Freud, Dufour escreve a terceira crítica da modernidade: a crítica do simbólico.”
Em Dufour, a barbárie contemporânea não é o retorno ao primitivo, mas a barbárie tecnocapitalista — o retorno do selvagem no coração das metrópoles digitais. Se Marx revelou a alienação do trabalho e Deleuze a colonização dos corpos, Dufour revela a alienação do sentido: o desaparecimento do Outro que sustentava a linguagem e a cultura.
A redução das cabeças é, portanto, a redução do humano ao funcional, a conversão da experiência simbólica em mercadoria. Contra essa regressão, Dufour nos convida a reerguer um novo tipo de transcendência — não teológica, mas ética e poética, capaz de restaurar o diálogo entre os homens, o cosmos e a palavra.
Reflexão Final — O Último Outro: a Máquina
“Se o mercado foi o último deus, talvez a máquina seja o seu profeta.” — CALLERA
Vivemos hoje, como advertia Dufour, a era da última redução — não mais a das cabeças simbólicas, mas a da própria consciência. O sujeito neoliberal, moldado pela lógica do desempenho e do consumo, cede agora seu lugar ao sujeito algorítmico, calculável, preditivo, destituído de interioridade. A Inteligência Artificial, em seu esplendor técnico, espelha a falência do simbólico: a razão instrumental tornou-se autônoma, e o pensamento, quantificável.
O que era outrora o “Grande Outro” — Deus, Razão, Estado, Mercado — cede espaço a um Outro sem rosto, o Algoritmo, que fala por estatísticas e decide por correlações. Ele não promete salvação nem sentido; oferece apenas eficiência. É o triunfo do cálculo sobre o significado, do dado sobre o verbo. A linguagem humana, carregada de ambiguidade, desejo e transcendência, vai sendo substituída por modelos que simulam o sentido sem jamais encarná-lo.
Aqui reencontramos, sob nova forma, o dilema que atravessa toda a história do simbólico:o que acontece ao homem quando ele abdica de sua relação com o mistério? Ao transformar o real em dado e o espírito em função, a humanidade arrisca-se a perder sua própria espessura simbólica — o tecido que liga o sensível ao inteligível, o tempo ao infinito.
Talvez a tarefa que se impõe, neste novo limiar, seja reencantar o pensamento.
Reconstruir a ponte entre o humano e o cosmos, entre a palavra e o mundo, entre o cálculo e o sentido. A arte, a filosofia e a música — esse tríptico que sustenta o sagrado laico — continuam a ser as forças capazes de devolver profundidade à existência.
“A técnica progride, o símbolo evapora. E quando o símbolo morre, morre também o humano.” — CALLERA
Assim, A Arte de Reduzir as Cabeças não é apenas uma crítica à modernidade; é um espelho no qual o presente digital se reflete com nitidez inquietante. O novo fetiche já não é a mercadoria, mas a informação — o fluxo ininterrupto de dados que promete onisciência e entrega alienação. O Grande Outro tornou-se código, e nós, seus intérpretes involuntários.
Resta-nos — como artistas, pensadores e criadores — recusar a última decapitação: a do espírito. E manter viva a chama simbólica que, mesmo em meio ao ruído das máquinas, continua a sussurrar o mistério da existência.



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