A Canção de Roland — O Nascimento do Herói Medieval
- carlospessegatti
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O épico que funda o imaginário cavaleiresco da Idade Média e revela as raízes do ethos heroico francês
“Paien unt tort e chrestïens unt dreit.”
“Os pagãos estão errados e os cristãos estão certos.”— La Chanson de Roland, laisse 101
“Roland é bravo, mas não é sábio.”— Provérbio medieval baseado no poema
1. O Poema que Inaugura a Épica Francesa
Entre os anos 1100 e 1125, surgiu na França (provavelmente em território normando) o texto que se tornaria a mais antiga e a mais importante das Chansons de Geste: La Chanson de Roland. Não se sabe ao certo quem o escreveu, mas o nome “Turoldus”, inscrito na última laisse (estrofe), sugere ter sido o autor, copista ou editor do manuscrito.
O poema integra o ciclo épico chamado Geste du Roi, dedicado às façanhas de Carlos Magno, já sacralizado como defensor da cristandade. Contudo, o verdadeiro foco narrativo não é o imperador, mas Roland, seu sobrinho e comandante da retaguarda durante a desastrosa emboscada de Roncesvales, no ano 778.
A Canção de Roland — com suas cerca de 4.000 decassílabos — não só inaugura um gênero literário como também estrutura um ideal: o cavaleiro cristão como encarnação de coragem, honra e martírio.
2. Histórico da Batalha e da Transformação Poética
O fato histórico
O evento real que inspira o poema foi modesto:
Em 778, as tropas de Carlos Magno, retornando da Espanha, sofreram um ataque dos bascos, não dos sarracenos.
Foi uma represália local, não uma guerra religiosa.
Roland era um oficial militar importante, mas não um mártir heroico.
A transfiguração épica
A literatura medieval não se limita ao real — sublima-o. A partir dos séculos XI e XII, em pleno fervor das cruzadas, o imaginário cristão reorganiza o acontecimento:
Os bascos tornam-se sarracenos, inimigos da fé.
A queda de Roland converte-se em sacrifício heroico.
A emboscada vira uma grande batalha de civilizações.
Carlos Magno, octogenário no poema, é representado como o rei ungido, iluminado por Deus.
Surge assim um mito fundador da cristandade guerreira medieval.
3. Estrutura, Estilo e Linguagem
A obra é escrita em laisses (estrofes de extensão variável), marcadas por assonâncias — não rimas. A linguagem é solene, formulaica, típica da poesia oral destinada aos trovadores (jongleurs).
Roland e Olivier são contrapartes simbólicas:
Roland: coragem absoluta, orgulho, impulso.
Olivier: prudência, sabedoria, razão.
Essa dialética ecoa no conflito central: Roland se recusa a tocar o olifante (trompa), o que teria chamado Carlos Magno em seu socorro.
Excerto (tradução livre)
“Olivier diz: ‘Toque o olifante, companheiro.’Roland responde: ‘Não. Eu não serei culpado de desonrar meus parentes e a doce França.’”— Laisses 83–84
O heroísmo medieval é trágico: nasce da fidelidade inquebrantável, mesmo quando ela conduz à morte.
4. Temas Centrais
A lealdade absoluta
Roland encarna a fidelidade extrema ao rei e à pátria — um valor que organiza toda a narrativa.
A luta entre a Cristandade e o Islã
Mais ideológica do que histórica, essa oposição reflete o espírito das Cruzadas.
A tensão entre bravura e sabedoria
O erro heroico de Roland — o orgulho — é também sua grandeza.
A santificação da morte
A morte de Roland é um ritual:
“Com a mão direita, ele ergueu o guante, voltado para Deus, como sinal de penitência.”— Laisse 176
O herói morre em direção ao Oriente, como quem contempla Jerusalém. A narrativa o aproxima de um mártir.
5. A Retaguarda, o Olifante e a Cena Final
A cena mais célebre do poema é o momento em que Roland, cercado, finalmente toca o olifante. Mas é tarde.
Seu gesto é tão intenso que o instrumento rompe e os templos de sua testa se quebram. É o heroísmo levado ao limite da carne. Quando Carlos Magno retorna e encontra o exército destruído, a narrativa adquire contornos escatológicos — uma batalha cósmica entre bem e mal.
6. A Obra Como Síntese do Imaginário Medieval
A Canção de Roland funciona como:
poema épico
documento ideológico das Cruzadas
fundação do ethos cavaleiresco francês
obra-prima da poesia oral
exaltação da fé, da honra e do destino trágico
Sem Roland, não haveria Tristão, Lancelot, Orlando Furioso, Roldan espanhol, nem Ariosto ou Tasso nas formas renascentistas.
7. Epílogo — A Permanência do Herói
Roland atravessa os séculos porque simboliza algo essencial da mentalidade medieval: o herói que enfrenta a morte consciente, orgulhoso, incapaz de trair seus valores — mesmo quando esses valores o conduzem ao fim.
Sua morte, de certo modo, é sua vitória.
“Deus enviou Seus anjos para buscar a alma de Roland.”— Laisse 176
Assim nasce o herói francês — pela fusão de fé, sangue e canto.
A Canção de Roland — Versão Narrativa Poética
O eco do olifante através dos séculos
Narrativa Poética
No alto dos montes de Roncesvales, onde a névoa parece antiga como as primeiras rezas, marchava a retaguarda de Carlos, o Grande.
E na dianteira desse pequeno exército, erguia-se Roland, filho do orgulho, sobrinho do imperador, cavaleiro de olhar ardente, como se cada gesto fosse um pacto com a própria história.
O sol declinava, mas não sua coragem. As lanças brilhavam, o vento roçava os estandartes da França e o murmúrio das árvores parecia anunciar um presságio.
Olivier, seu amigo de alma prudente, via a sombra que se adensava no vale. “Chamemos Carlos, Roland.Ainda há tempo de evitar o fim dos bravos.”
Mas Roland, feito de chama e ferro, ergueu o rosto contra o vento. “Não, companheiro. A honra pesa mais que a vida. E a França não será envergonhada enquanto eu estiver de pé.”
E então vieram os sarracenos —um mar escuro de gritos, cimitarra e poeira. Os cavaleiros da retaguarda lutaram como quem luta pela eternidade. E a eternidade, naquele momento, cabia em um vale.
O combate rugiu por horas sem nome. O sangue misturou-se ao pó. Olivier tombou como uma árvore sábia. Roland, sozinho entre os mortos, ergueu enfim o olifante.
O som saiu áspero, rasgando montes e séculos; um som que não era de metal — era de destino. O chifre estourou, e com ele os templos do herói.
Quando Carlos Magno finalmente chegou, o vale parecia um altar. Roland jazia sobre a relva, com Durendal colocada sob o corpo, voltado para o Oriente —como se olhasse Jerusalém.
E Deus, dizem as laisses, enviou seus anjos. A alma do herói subiu como um canto, e o canto permanece. Na França, na Europa, no eco do mundo que ainda escuta o som do olifante.
Linha do Tempo Histórica
756–814 — Reinado de Carlos Magno
O Império Carolíngio se expande, reorganiza a Europa Ocidental e estabelece o imaginário da cristandade guerreira.
778 — A batalha de Roncesvales (evento histórico real)
Carlos Magno retorna da Península Ibérica.
Sua retaguarda é atacada por bascos, não por sarracenos.
Morrem Roland e outros oficiais.
Séculos IX–X — Formação das tradições orais
Histórias sobre Roland começam a circular entre trovadores, misturando fatos e lendas.
1100–1125 — Composição da Chanson de Roland
Provavelmente escrita por um clérigo normando. O nome Turoldus aparece no final do manuscrito mais antigo.
Século XII — Cruzadas
O poema torna-se instrumento ideológico e símbolo da luta cristã contra o Islã.
Século XIII — Consolidação das chansons de geste
A obra influencia outras narrativas épicas do ciclo carolíngio.
Séculos XIV–XV — Declínio do gênero
A prosa cavaleiresca toma o lugar da épica oral.
1837 — Redescoberta do manuscrito de Oxford
A obra renasce nos estudos literários modernos.
Séculos XX–XXI — Patrimônio cultural da França
A Canção de Roland passa a ser interpretada como monumento da literatura medieval e da formação do imaginário europeu.
Glossário das Figuras Centrais
Roland (ou Hruodlandus)
Sobrinho de Carlos Magno e comandante da retaguarda. Bravura absoluta, orgulho extremo. Simbólico como mártir e herói trágico.
Olivier
Companheiro de Roland. Representa a sabedoria, a razão prudente. O contraponto moral do herói.
Carlos Magno (Charlemagne)
Rei dos Francos e Imperador do Ocidente. Na épica, aparece como monarca sagrado, escolhido por Deus.
Ganelon
Padrasto de Roland e traidor supremo. Vende o herói aos sarracenos. Figura central no imaginário da traição medieval.
Turpin
Arcebispo-guerreiro. Une fé e espada: um soldado de Cristo. Simboliza a religiosidade militante das Cruzadas.
Durendal
A espada de Roland. Inscrições sagradas em seu punho. É quase um personagem próprio.
Olifante
O chifre de marfim usado por Roland para chamar ajuda. Seu sopro tardio é o momento mais emblemático do poema.
La Chanson de Roland


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