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A Sexualidade como Produto Histórico e Econômico

  • carlospessegatti
  • 30 de ago.
  • 9 min de leitura
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COLEÇÃO: SÉRIE FILOSÓFICA



Foucault à luz de Marx: como as relações de produção moldam instituições, corpos e subjetividades


“Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.”— Karl Marx, A Ideologia Alemã


Introdução

Michel Foucault desloca o debate clássico sobre sexualidade ao mostrar que ela não é uma essência natural reprimida por poderes exteriores, mas um campo historicamente produzido por discursos, práticas e dispositivos de poder.


Ao mesmo tempo, Karl Marx oferece uma chave interpretativa que estabelece como as formas materiais de produção e reprodução social estruturam instituições, leis, modos de vida e subjetividades. Lido em diálogo com Marx, o diagnóstico foucaultiano ganha uma explicação material mais profunda: as disposições sexuais, as normas sobre casamento, as categorias de identidade e as práticas morais não surgem ao acaso — são efeitos articulados da forma como uma sociedade organiza sua produção e reprodução.


Este ensaio amplia e sistematiza essa leitura: começo expondo os núcleos teóricos de Foucault e Marx; mapeio historicamente como o “sistema de alianças” antecede e condiciona a sexualidade; analiso os mecanismos institucionais (Estado, Direito, Medicina, Família, economia política) que produzem e administram sexualidades; e, por fim, proponho uma síntese crítica que combina a microfísica do poder foucaultiana com a determinação material marxista.


1. Nódulos conceituais: o que nos dizem Foucault e Marx?

Foucault. Em A História da Sexualidade Foucault rejeita a hipótese da repressão única e linear. Para ele, a sexualidade é historicamente produzida por um conjunto de práticas discursivas e institucionais — um dispositivo ou aparelho — que articula saberes (medicina, psiquiatria, pedagogia), instituições (família, escola, prisões) e técnicas de poder (vigilância, confissão, normalização).


Elementos-chave: o “sistema de alianças” nas sociedades pré-modernas; a emergência da “biopolítica” e do “regime das sexualidades” na modernidade; a produção de sujeitos sexuais por meio de discursos que classificam e nomeiam.


Marx. A teoria marxista parte da primazia das condições materiais: as relações de produção (quem produz, com que meios e em que relações) constituem a base sobre a qual se erectam superestruturas — Estado, Direito, ideologia, família. Para Marx, as subjetividades são formadas em contextos onde as exigências de reprodução material — da força de trabalho, da propriedade, da transmissão intergeracional — impõem formas de organização social e simbólica.


2. O “sistema de alianças” como efeito da organização material da vida

Foucault lembra que, em muitas sociedades, a sexualidade era primordialmente regulada para assegurar transmissões (linhagens, heranças), formar pactos políticos e organizar coalisões militares. Do ponto de vista marxista, isso é perfeitamente inteligível: as formas de posse e de reprodução material exigiam regras institucionais que preservassem propriedades, terras e o trabalho produtivo. Assim:

  • Nas sociedades agrárias e feudais, o casamento e a consanguinidade asseguravam a transmissão da terra, da autoridade local e da composição das forças produtivas familiares.

  • No processo de centralização estatal e formação de mercados, as alianças matrimoniais e as normas sexuais serviram para estabilizar relações de propriedade e domínios políticos.


Ou seja, antes de ser um domínio do íntimo, a sexualidade aparece como tecnicidade para a reprodução material e social — em consonância com a prioridade marxista das relações produtivas.


3. Como o capitalismo reorganiza sexualidades: do dispositivo ao biopoder

A passagem ao capitalismo industrial e, depois, às suas formas contemporâneas envolve transformações que reorganizam sexualidades:

  • Família nuclear e reprodução da força de trabalho: o capitalismo requer trabalhadores disciplinados, reprodutores de força de trabalho e consumidores. A família nuclear (com suas normas morais e obrigações) desempenha papel central na reprodução social: cria, socializa e disciplina futuras gerações de trabalhadores e absorve trabalho reprodutivo (cuidado, afecto) não remunerado.

  • Biopolítica e gestão populacional: Estados modernos passaram a gerir a população (saúde pública, higiene, natalidade, educação). Essas políticas não são neutras: determinam quais corpos são incentivados a reproduzir-se, quais estigmas recaem sobre determinados grupos e como a sexualidade é regulamentada para favorecer a ordem econômica.

  • Medicina, psiquiatria e normalização: o saber médico e psiquiátrico fornece categorias (doença, desvio, perversão) que classificam práticas sexuais; esta classificação auxilia o poder a distinguir entre o “útil” e o “perigoso” para o sistema produtivo.


Marx forneceria um diagnóstico: essas transformações não são epifenomenais; estão intrinsecamente conectadas às necessidades de acumulação do capital — controlar condições de vida e de reprodução para garantir a oferta de trabalho e a estabilidade social necessária ao mercado.


4. Mecanismos e instituições que articulam sexualidade e economia

Vejamos alguns mecanismos concretos em que se enlaçam sexualidade e relações de produção:

  • Direito e propriedade: leis de herança, casamento e legitimidade são diretamente orientadas pela preservação de propriedade privada e da transmissão de capital. Monogamia e regras de paternidade asseguram origem e sucessão.

  • Educação e moralidade: a escola não apenas forma competências laborais; inculca normas de comportamento sexual compatíveis com o papel social do indivíduo no sistema produtivo.

  • Trabalho e género: a divisão sexual do trabalho organiza papéis produtivos e reprodutivos. A manutenção de mulheres em trabalho reprodutivo não remunerado reduz o custo de reprodução da força de trabalho para o capital.

  • Administração da saúde pública: políticas de saúde, controle de doenças sexualmente transmissíveis, campanhas de natalidade ou controle de natalidade transformam sexualidade em objeto de gestão técnica e económica.

  • Colonialismo e racialização: regimes coloniais impuseram normas sexuais para disciplinar populações, controlar relações raciais e estruturar mão-de-obra. A sexualidade foi usada para justificar hierarquias e exploração.


5. Exemplos históricos e contemporâneos (esquemáticos)

  • Feudalismo: casamento como instrumento de aliança e transmissão de terras.

  • Consolidação do Estado moderno: regulação do casamento para fins fiscais e dinásticos.

  • Capitalismo industrial (séculos XIX–XX): disciplina dos corpos (fábrica, escola, família); patologização da sexualidade não normativa.

  • Século XX (biopolítica): políticas natalistas, eugenia e higiene pública; intervenção estatal na reprodução e vigilância das populações.

  • Neoliberalidade e mercantilização: sexualidades tornam-se mercados (pornografia, indústria do sexo), mas continuam reguladas por instituições que dependem da lógica de acumulação (direito, imigração, trabalho).

(Observação: estes quadros são proposições analíticas — para cada ponto há vastas especificidades históricas que devem ser investigadas localmente.)


6. Tensões teóricas e uma proposta de síntese crítica

Há uma tensão real entre Foucault e Marx: o primeiro enfatiza a difusão do poder em micropráticas, recusando uma explicação que reduz tudo à economia; o segundo enfatiza a determinação material pela base produtiva. Essa tensão, porém, não precisa ser insolúvel. Uma leitura frutífera propõe:

  • Combiná-las metodologicamente: usar a análise marxista para explicar por que determinados regimes de sexualidade emergem (por exemplo, a necessidade capitalista de gerir populações), e usar a genealogia foucaultiana para descrever como esses regimes se instalam na vida quotidiana — por meio de discursos, rotinas, técnicas e instituições.

  • Ver o poder como relacional e enraizado na economia: o poder circula em micro-redes mas estas redes são atravessadas por necessidades estruturais de reprodução social. A microfísica do poder opera para assegurar objetivos que têm uma base material (acumulação, reprodução da força de trabalho, manutenção de propriedade).

  • Analisar a autonomia relativa do político e do simbólico: instituições discursivas e jurídicas têm suas próprias dinâmicas; contudo, sua direção geral pode ser explicada por interesses materiais dominantes.


7. Implicações políticas e emancipatórias

Se a sexualidade é resultado de articulações entre economia, Estado e dispositivos de saber-poder, então as lutas pela libertação sexual não podem se limitar a uma luta apenas cultural ou identitária. Há duas lições políticas:

  1. Política integral: articular demandas por reconhecimento e desconstrução de normas com lutas econômicas pela transformação das relações de produção (redistribuição, reconhecimento do trabalho reprodutivo, democratização do acesso aos meios de reprodução social).

  2. Desmontagem dos aparelhos: intervir nas instituições (saúde, educação, direito), nas práticas cotidianas e nas condicionantes materiais que sustentam regimes opressivos de sexualidade.


Ou seja, emancipação sexual e transformação econômica são dimensões interdependentes.



Ler A História da Sexualidade por uma lente marxista não é reduzi-lo; é aprofundá-lo. Foucault nos dá o diagnóstico das técnicas, discursos e práticas que constituem sexualidades; Marx nos fornece a hipótese material sobre por que essas técnicas e práticas tomam as formas que tomam. Juntos, apontam para uma verdade poderosa: aquilo que naturalizamos como “sexo”, “família”, “identidade” e “intimidade” é, em grande medida, produto de uma história material — das formas como produzimos e reproduzimos a vida social.


Compreender essa historicidade é condição para qualquer projeto crítico e emancipatório que queira transformar tanto as instituições quanto as formas mais íntimas de subjetividade.



👉 Em resumo, o que Foucault nos mostra é:

  • Sistema de alianças: relações sexuais eram reguladas e normatizadas não pelo "prazer", mas pela função social e política que exerciam. O casamento, por exemplo, servia como dispositivo de controle da transmissão de bens, da constituição de alianças políticas e da reprodução da força de trabalho.

  • Pré-determinação material: antes de ser uma questão de desejo, a sexualidade estava inscrita em regras que definiam quem podia se casar com quem, quem herdava, como os corpos eram administrados em função da produção da vida material.

  • Historicidade das práticas: o que chamamos de “sexualidade” não é uma essência, mas o resultado de práticas históricas que mudam conforme as condições sociais e econômicas. Para Foucault, trata-se de uma relação de poder-saber, ou seja, um campo onde discursos e instituições produzem verdades sobre os corpos e os desejos.


Assim, quando dizemos que a sexualidade “está pré-determinada como produzimos a vida material”, tocamos em um ponto que aproxima Foucault de uma leitura quase materialista: a sexualidade é uma tecnologia de poder inscrita em formas de produção e reprodução da vida social.


Se quisermos dar um passo a mais, podemos pensar que:

  • No regime de alianças (sociedades tradicionais), a sexualidade é um mecanismo de regulação externa – ditado por família, Estado, Igreja.

  • No regime das sexualidades (a partir da modernidade), há um deslocamento: ela passa a ser investigada, medicalizada, normalizada – mas sempre dentro de um horizonte que serve à manutenção das forças produtivas e do controle social.


✨ Ou seja, a sexualidade não é só um campo do íntimo, mas um nó estratégico da política e da economia.



Foucault e Marx: Sexualidade, Produção e Subjetividade


1. O ponto de partida de Foucault

Em A História da Sexualidade, Foucault rompe com a ideia de que a sexualidade seria um instinto natural reprimido pelo poder. Para ele, não se trata de “repressão”, mas de produção de discursos, práticas e normas que organizam a sexualidade como campo de saber e poder.


No volume I, A Vontade de Saber, Foucault mostra que a sexualidade esteve, em sociedades pré-modernas, inscrita em um sistema de alianças: matrimônio, herança, linhagens, transmissões de bens, formação de exércitos, pactos entre famílias e povos. Ou seja, a sexualidade não era uma dimensão íntima do desejo, mas um dispositivo regulado pelas necessidades sociais, políticas e econômicas de uma coletividade.


2. O ponto de vista marxista

Marx parte da premissa de que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (A Ideologia Alemã). Em outras palavras, as formas de subjetividade, de direito, de moralidade e de instituições nascem das relações materiais de produção – do modo como os homens organizam a produção e reprodução da vida.


Assim, se aplicarmos essa chave de leitura a Foucault, podemos dizer:

  • O “sistema de alianças” descrito por Foucault corresponde, em termos marxistas, a um aparelho superestrutural derivado da base econômica: a forma como a sociedade produz sua vida material determina como organiza casamentos, propriedades, linhagens e fronteiras.

  • O que Foucault chama de “regime das sexualidades” (a medicalização e normatização moderna da sexualidade) pode ser lido como parte do processo de consolidação do capitalismo industrial. O corpo sexualizado passa a ser objeto de disciplina, vigilância e produtividade – em sintonia com o que Marx chamaria de necessidade de reprodução da força de trabalho.


3. Sexualidade como reflexo das relações de produção

Se Marx diria que as instituições (Estado, Direito, Religião, Família) nascem das necessidades materiais da reprodução social, poderíamos interpretar Foucault do seguinte modo:

  • O casamento e a família são moldados historicamente pelas necessidades do modo de produção. No feudalismo, o casamento assegura linhagens e transmissão de terras. No capitalismo, a família nuclear organiza a reprodução da força de trabalho e a socialização inicial dos sujeitos para o mercado.

  • O discurso médico-científico sobre sexualidade, que Foucault chama de biopolítica, também se conecta com o capitalismo: é necessário gerir a vida e a morte da população, regular natalidade, controlar doenças, planejar a reprodução – tudo em função da produtividade social.

  • A subjetividade sexual (a noção moderna de “identidade sexual”, de “ser homossexual”, de “ser heterossexual”) surge como efeito desses dispositivos. No viés marxista, isso se compreende como um reflexo de como a sociedade capitalista precisa classificar, controlar e normalizar os corpos para reproduzir o sistema.


4. Aproximações e tensões entre Foucault e Marx

  • Aproximações: ambos partem da recusa a essências. Tanto a sexualidade (Foucault) quanto as instituições (Marx) não são naturais, mas históricas, produtos das condições materiais e das relações sociais de poder.

  • Tensões: Foucault não adota a lógica da base e superestrutura. Ele vê o poder como difuso, em rede, presente em micro-relações (família, escola, hospital). Já Marx enfatiza a centralidade da economia política, entendendo que essas formas superestruturais, por mais autônomas que pareçam, derivam em última instância da base produtiva.



Lendo Foucault a partir de Marx, podemos dizer que:

  • A sexualidade é um produto histórico-material, inscrito nas condições de produção e reprodução social.

  • O sistema de alianças, descrito por Foucault, se alinha à noção marxista de que as formas familiares, jurídicas e políticas nascem das necessidades materiais da sociedade.

  • O regime moderno da sexualidade, com sua biopolítica, pode ser entendido como a expressão do capitalismo em sua necessidade de administrar corpos e populações para garantir a expansão da acumulação.

  • Portanto, a sexualidade não é apenas uma questão íntima, mas uma forma de subjetividade moldada pela economia política do capital – um aparato social que organiza desejos, corpos e identidades segundo as exigências do modo de produção vigente.



 
 
 

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