ECOS HUMANOS DO MEDIEVO
- carlospessegatti
- 12 de nov.
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Entre o Mito, o Corpo e o Espírito segundo Jacques Le Goff
“A Idade Média não é apenas um tempo obscuro — é um tempo do imaginário.”— Jacques Le Goff
Na névoa simbólica da Idade Média, Jacques Le Goff encontra o rosto do homem europeu. Não o guerreiro mítico nem o servo anônimo, mas o ser contraditório que oscila entre a espada e a cruz, entre o lucro e o perdão. Seu livro Homens e Mulheres da Idade Média (1985) não descreve um período: revela uma civilização interior, uma humanidade que se reinventa entre a fé e o medo.
Le Goff nos convida a ouvir o rumor das aldeias, o som das badaladas dos sinos, o silêncio das abadias e a pulsação das cidades em nascimento. Em cada figura — o cavaleiro, a mulher, o estudante, o mercador, o louco — o historiador descobre um fragmento do humano universal. A Idade Média, para ele, não é a noite da razão, mas o amanhecer de uma sensibilidade que ainda nos habita.
O Sagrado e o Heroico: o Cavaleiro e o Santo
“A santidade e a cavalaria são irmãs: uma guerreia contra o mal, a outra, contra o pecado.”— Le Goff
Le Goff inicia sua jornada com o retrato duplo do cavaleiro e do santo — dois caminhos de honra, duas formas de combate. O primeiro vive pela glória, o segundo pela renúncia. Ambos, porém, expressam uma sociedade que tenta reconciliar violência e transcendência. A espada torna-se instrumento de fé, e o mosteiro, o castelo da alma. A Idade Média descobre, assim, uma espiritualidade guerreira, na qual lutar é também salvar-se.
O Homem da Terra: o Camponês e o Tempo Divino
“O camponês medieval sustentava o céu com o mesmo vigor com que lavrava o solo.”— Le Goff
Descendo dos castelos aos campos, Le Goff dá voz aos camponeses — seres do tempo circular, ligados ao ritmo das estações e às bênçãos celestes. Para eles, a natureza era sacramento e o trabalho, oração. A colheita e o pecado, a seca e a penitência, o pão e a hóstia — tudo se entrelaçava. No camponês, o historiador encontra o homem que sustenta o mundo, não apenas com a enxada, mas com o sentido.
“A foice e o rosário pertencem à mesma mão.”
A Mulher e o Mito: Entre a Virgem e a Feiticeira
“A mulher medieval foi venerada e queimada — raramente compreendida.”— Le Goff
A mulher medieval surge, nas páginas de Le Goff, como o espelho das contradições do espírito cristão. Elevada à condição divina pela figura de Maria, mas lançada às chamas como feiticeira, ela é símbolo da ambiguidade entre pureza e tentação. O historiador recorre às místicas — Hildegarda de Bingen, Catarina de Sena — para revelar como a voz feminina buscou espaço entre o dogma e a inspiração. No fundo, a mulher de Le Goff é a ponte entre o humano e o inefável.
“A Igreja, ao exaltar a Virgem, traçou a sombra de todas as outras.”
A Razão e a Palavra: o Intelectual Medieval
“Nasce o homem de letras quando o pergaminho substitui a espada.”— Le Goff
No século XIII, as universidades transformam a fé em reflexão. O estudante e o mestre, figuras novas do Ocidente, trazem à luz uma racionalidade ainda impregnada de Deus. Le Goff retrata esse nascimento da razão não como ruptura, mas como diálogo — a teologia é o solo do pensamento, não sua prisão.
O intelectual medieval é, antes de tudo, um mediador entre o céu e a lógica, entre o verbo divino e a gramática humana.
“O saber medieval não buscava a verdade — buscava a harmonia entre as verdades.”
O Dinheiro e o Pecado: o Mercador e o Burguês
“O dinheiro é o novo demônio que se quer santificar.”— Le Goff
Nas ruas e feiras das cidades emergentes, o mercador simboliza o nascimento do indivíduo moderno. Seu mundo é o do contrato, da contabilidade e da viagem. A Igreja o teme, mas o tolera; o condena, mas o absolve. Le Goff identifica nesse homem de negócios a semente da modernidade — a domesticação do lucro pela moral. É o instante em que o tempo se transforma em ouro, e a salvação começa a ser medida pelo peso das moedas.
“A contabilidade substitui a oração; o tempo torna-se ouro.”
O Marginal e o Louco: O Lado Sombrio do Sagrado
“Toda civilização se revela por aquilo que ela rejeita.”— Le Goff
Nos deserdados — mendigos, loucos, hereges — Le Goff reconhece o avesso da ordem cristã. Eles são os exilados da razão, mas também seus profetas. O louco medieval, errante e iluminado, encarna o medo e a liberdade; o herege, a inquietação que sustenta a fé. Ao expulsar o diferente, a Idade Média delineia suas fronteiras morais — e, sem saber, cria a figura moderna do marginal.
“O herege é o espelho escuro da fé.”
O Invisível e o Real: o Imaginário Medieval
“O imaginário é o verdadeiro cimento da Idade Média.”— Le Goff
No último movimento do livro, Le Goff mostra que a Idade Média foi antes de tudo uma civilização do invisível. O demônio, o anjo, o purgatório, as visões do além — todos são imagens que organizam a realidade. Crer é compreender o mundo como uma vibração contínua entre matéria e espírito. O imaginário medieval, longe de ser superstição, é a linguagem simbólica com que o homem buscou traduzir o indizível.
“A Idade Média sonhou o invisível para suportar o real.”
O Medievo em Nós
Homens e Mulheres da Idade Média é mais do que uma galeria de retratos: é um espelho da condição humana. Jacques Le Goff devolve ao passado sua complexidade, e nos obriga a reconhecer que o Medievo não terminou. O medo, o sagrado, o poder, a marginalidade — todos continuam entre nós, transmutados em novas formas.
Como o cavaleiro e o santo, também buscamos sentido em meio à fragmentação. Como o mercador e o intelectual, tentamos conciliar razão e desejo. E como o camponês e a mulher, ainda sustentamos o mundo visível com as mãos, e o invisível com o coração.
“O homem medieval acreditava em forças invisíveis; nós, em sistemas. Mas ambos continuamos a buscar o sentido.”




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