Fascismo segundo E. B. Pachukanis
- carlospessegatti
- há 5 dias
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A forma política das crises do capitalismo: da França pós-revolucionária ao século XXI
E. B. Pachukanis: “O fascismo é a ferramenta mais eficaz para a repressão do movimento operário.”
E. B. Pachukanis: “Toda a vida política do país encontra-se sob controle do partido fascista, e todo poder emana do líder.”
1. Introdução — Fascismo como solução emergencial das crises burguesas
A interpretação de Evguiéni B. Pachukanis parte de um princípio fundamental: o fascismo não é exceção irracional, mas mecanismo estrutural que o capitalismo aciona quando suas formas tradicionais de dominação — sobretudo o parlamentarismo liberal — entram em colapso. Quando o consenso não se sustenta mais, a burguesia recorre a uma forma política extraordinária, violenta, centralizadora.
Um ponto decisivo da leitura pachukaniana é que, em momentos de crise social profunda, a classe dominante pode se afastar provisoriamente do comando direto, abrindo espaço para a ascensão de um líder autoritário capaz de “restaurar a ordem” por meios extralegais. O resultado é uma aliança instável: o capital apoia este líder para eliminar obstáculos, mas frequentemente vê surgir uma figura que tenta autonomizar-se, colocando-se acima das instituições tradicionais.
Esse modelo histórico aparece de maneira clara em três grandes momentos:
o bonapartismo francês no século XIX, quando a burguesia, enfraquecida e dividida, permitiu a ascensão de Napoleão Bonaparte como árbitro autoritário;
os fascismos europeus do século XX, quando Mussolini e Hitler foram impulsionados por elites que buscavam esmagar o movimento operário;
formas contemporâneas de neofascismo, como o bolsonarismo, que surgiu no contexto de erosão institucional e descrédito da democracia liberal.
Pachukanis fornece, assim, uma chave de leitura de longo curso: o fascismo aparece sempre que a burguesia perde sua capacidade de governar por consenso e precisa de alguém que faça o “trabalho sujo” da reordenação coercitiva.
2. Capítulo a capítulo — O que Pachukanis estrutura, explica e prevê
Capítulo 1 – Para uma caracterização da ditadura fascista (1926)
Pachukanis identifica quatro pilares:
Partido-milícia: a fusão entre movimento político e força paramilitar que intimida adversários e toma as ruas.
Destruição do parlamento: instituições continuam existindo, mas são gradualmente esvaziadas de conteúdo.
Neutralização da classe trabalhadora: sindicatos autônomos são dissolvidos, perseguidos ou capturados.
Culto ao líder: o poder deixa de ser institucional e passa a advir da figura carismática.
Excerto: “O regime fascista pode ser definido como a ditadura da grande burguesia, levada a cabo sob a forma do domínio aberto de um único partido.”
A análise encaixa-se perfeitamente em fenômenos como o bonapartismo, cuja lógica também consistiu em um líder personalista surgindo para resolver o impasse entre classes, e em movimentos neofascistas contemporâneos, nos quais milícias ideológicas, discursos antiliberais e captura institucional reaparecem sob novas roupagens.
Capítulo 2 – Fascismo (1927)
Redigido para uma enciclopédia jurídica, este texto mostra como o fascismo transforma o direito:
mantém a forma legal, mas liquida o conteúdo normativo;
substitui garantias por decretos;
concentra autoridade no chefe;
reorganiza a sociedade sob um moralismo nacionalista.
Excerto: “Toda a vida política encontra-se sob controle do partido fascista… todo poder emana do líder.”
Aqui a comparação com regimes personalistas modernos é inevitável: quanto maior o colapso institucional, maior a tendência ao hiperpresidencialismo autoritário, à politização da justiça e à erosão das normas democráticas — dinâmica visível em experiências recentes no Ocidente.
Capítulo 3 – A crise do capitalismo e as teorias fascistas do Estado (1931)
Este é o texto mais teórico. Pachukanis mostra:
que o capitalismo em sua fase imperialista vive crises cíclicas;
que essas crises corroem a legitimidade do liberalismo;
que setores burgueses buscam teorias que justificam o Estado forte e o autoritarismo.
O fascismo emerge como a forma política perfeita para “restaurar” a autoridade burguesa sobre o conjunto da sociedade.
É nesse ponto que o bonapartismo do século XIX aparece como paradigma inaugural: quando uma revolução burguesa abre espaço para intensa disputa social, a própria burguesia, temendo perder tudo, aceita que um líder excepcional concentre poderes acima das classes, governando como árbitro absoluto.
A mesma lógica explica a adesão de setores dominantes aos fascismos europeus do século XX, e observa-se novamente em correntes políticas atuais que, diante da perda de hegemonia, buscam um chefe autoritário que represente a “salvação nacional”.
Capítulo 4 – Como os sociais-fascistas falsificaram os sovietes na Alemanha (1933)
O ensaio aborda a incapacidade das forças moderadas de conter o avanço da reação. A social-democracia burocratizada, afirma Pachukanis, desmobilizou a classe trabalhadora, apostou na conciliação com elites conservadoras e acabou abrindo espaço para o triunfo do fascismo.
Este mecanismo repete-se historicamente:
quando setores progressistas perdem o vínculo com bases populares;
quando confiam em instituições já esgarçadas;
quando acreditam que o autoritarismo não passará “de certo limite”.
A história mostra que, nas crises, o líder personalista quase sempre tenta transformar a exceção em regra — dinâmica observada tanto no fascismo clássico quanto em formas neofascistas recentes.
3. Síntese teórica — O fascismo como recomposição autoritária da ordem burguesa
Da leitura conjunta, emergem três proposições centrais:
(1) O fascismo nasce do esgotamento do liberalismo.
Quando o parlamento deixa de organizar o conflito de classes de maneira eficaz, a burguesia busca uma solução extraordinária.
(2) O líder autoritário é ferramenta, não origem.
Ele se torna possível porque setores dominantes retiram-se do controle direto e permitem que uma figura personalista assuma, desde que garanta estabilidade “por cima”.
Foi assim com o bonapartismo, com o fascismo italiano e alemão, e com experiências contemporâneas de autoritarismo no século XXI.
(3) A solução autoritária tende a se autonomizar.
Uma vez no poder, o líder tenta pairar acima das classes e das instituições, ampliando seu próprio domínio. As elites que o sustentaram passam a enfrentá-lo.
4. Considerações finais — A atualidade explosiva da teoria de Pachukanis
A obra de Pachukanis continua essencial porque oferece:
uma explicação materialista, não moralizante, do autoritarismo;
um modelo estrutural que conecta crises econômicas, impasses políticos e surgimento de líderes excepcionais;
uma crítica profunda às ilusões liberais que acreditam poder conter o avanço da extrema direita sem enfrentar as bases sociais da crise.
Ao analisar do bonapartismo às formas contemporâneas de neofascismo, percebe-se que a lógica descrita por Pachukanis permanece ativa: o fascismo surge onde a burguesia perde a capacidade de governar por consentimento e busca restaurar sua hegemonia através da força, do culto ao líder e da destruição dos mecanismos democráticos.
É nesse terreno instável que figuras autoritárias brotam, crescem, se autonomizam e tentam impor sua própria permanência no poder.
A análise de Pachukanis, portanto, continua sendo uma das mais incisivas ferramentas para compreender a política das crises — passadas e presentes — e para diagnosticar as tendências perigosas de nosso próprio tempo.




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