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O Madrigal: A Arte da Voz Humana e o Crepúsculo Renascentista

  • carlospessegatti
  • 16 de nov.
  • 4 min de leitura
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Da canção vespertina inglesa às raízes italianas de uma forma que atravessou séculos


O madrigal é uma das formas mais fascinantes da tradição vocal europeia. A princípio, o nome evoca imediatamente as English Madrigals, aquelas peças corais que floresceram no fim do século XVI na Inglaterra e que se tornaram, ao longo do tempo, uma espécie de “canção vespertina”, cantada em ambientes domésticos ou em pequenos círculos aristocráticos. Mas, como tudo o que sobrevive, o madrigal é resultado de um longo trajeto cultural que o antecede e o transcende.


Este texto percorre suas origens italianas, sua viagem até a Inglaterra elisabetana e seus principais compositores, comentando também as peças que chegaram ao nosso tempo — não apenas como relíquias musicais, mas como organismos vivos que revelam muito sobre a sensibilidade sonora do Renascimento.


1. Origens: o madrigal italiano do Trecento e a idealização da poesia

O termo madrigale aparece pela primeira vez na Itália do século XIV, no Trecento, período que viu o florescimento de uma intensa cultura poético-musical vinculada às tradições regionais. Esse primeiro madrigal não era polifônico como o conhecemos no período renascentista. Era uma peça vocal a duas ou três vozes, com caráter bucólico, escrita sobre textos que exaltavam imagens pastorais, amores idealizados e metáforas relacionadas à natureza.

Grandes nomes desse primeiro período incluem:

  • Jacopo da Bologna

  • Giovanni da Cascia

  • Francesco Landini, o mais celebrado, cuja escrita melódica influenciaria gerações posteriores.


Esses madrigais medievais, ainda longe da complexidade renascentista, já carregavam algo essencial: a busca por casar palavra e música de modo direto, expressivo, quase emotivo. Essa busca se tornaria a marca estrutural da evolução posterior do gênero.


2. O renascimento italiano: o madrigal como laboratório da modernidade musical


É no início do século XVI que surge o madrigal renascentista propriamente dito, fruto da fusão entre:

  • o refinamento harmônico franco-flamengo,

  • a poesia italiana de Petrarca e seus seguidores,

  • e uma sensibilidade que tratava a música como veículo expressivo das emoções humanas.


O madrigal torna-se então uma peça polifônica para quatro, cinco ou seis vozes, frequentemente a cappella, onde cada gesto musical tenta traduzir um gesto do texto: lágrimas descem em escalas descendentes, suspiros são pintados em frases suspensas, luzes e sombras ganham timbres e dissonâncias.


Entre os grandes madrigalistas italianos estão:

  • Adrian Willaert

  • Cipriano de Rore

  • Luca Marenzio – mestre da expressividade

  • Carlo Gesualdo – o príncipe-compósitor que levou o cromatismo às fronteiras do possível

  • Claudio Monteverdi – que transformou o madrigal em um portal para a ópera barroca.


3. A Inglaterra abraça o madrigal: o florescimento elisabetano

A moda atravessa o Canal da Mancha por volta de 1580, impulsionada pela coletânea Musica Transalpina, publicada em Londres em 1588 com madrigais italianos traduzidos para o inglês. Este livro desencadeou um verdadeiro movimento cultural na corte de Isabel I.


Na Inglaterra, o madrigal adquire um caráter próprio: mais luminoso, frequentemente mais leve, marcado por um lirismo pastoral que combina amor cortês, natureza e humor.


Alguns dos maiores madrigalistas ingleses incluem:

  • Thomas Morley – o mais representativo, autor de verdadeiras jóias do madrigalismo inglês

  • Thomas Weelkes – de harmonia ousada e grande densidade expressiva

  • John Wilbye – refinado, introspectivo, talvez o mais profundo dos ingleses

  • Orlando Gibbons – já no limiar do barroco, mas com madrigais de grande elegância


O madrigal inglês tornou-se uma prática doméstica, cantada à mesa, em reuniões informais, ao entardecer. Daí a associação moderna com uma “canção vespertina”: uma música que reunia amigos e familiares no apagar das luzes, uma partilha íntima da voz humana.


4. Obras que sobreviveram até hoje

Muitas peças tornaram-se referências absolutas e continuam presentes em corais, gravações e estudo musicológico. Entre elas:


Italianos

  • “Il bianco e dolce cigno” (Jacques Arcadelt)

  • “Solo e pensoso” (Luca Marenzio)

  • “Asciugate i begli occhi” (Claudio Monteverdi)

  • “Moro, lasso, al mio duolo” (Carlo Gesualdo)


Ingleses

  • “Now is the Month of Maying” (Thomas Morley)

  • “Sing We and Chant It” (Thomas Morley)

  • “The Silver Swan” (Orlando Gibbons)

  • “As Vesta Was from Latmos Hill Descending” (Thomas Weelkes) – um dos mais famosos madrigais ingleses

  • “Flora Gave Me Fairest Flowers” (John Wilbye)


São obras que ainda ressoam porque carregam, ao mesmo tempo, simplicidade e profundidade: a voz humana é, afinal, o mais antigo dos instrumentos — e o madrigal explora sua expressividade de forma direta, quase cinematográfica.


5. A importância do madrigal na história da música

O madrigal não é apenas uma curiosidade renascentista. É um ponto de virada na história musical porque:

  1. A palavra passa a guiar a música, inaugurando o caminho que levaria à monodia barroca e à ópera.

  2. O cromatismo e a dissonância, especialmente com Gesualdo e Monteverdi, abrem as portas para a experimentação harmônica posterior.

  3. A prática coral doméstica cria uma cultura musical comunitária que marcou profundamente a Inglaterra e ecoa até hoje no canto coral contemporâneo.

  4. O madrigal antecipa, de certa forma, a ideia moderna de música como expressão subjetiva — muito antes do Romantismo.


O madrigal como espelho do humano

Há algo no madrigal que dialoga com a minha busca, pela interseção entre arte, ciência e experiência humana. A estrutura polifônica lembra sistemas complexos; a forma breve, porém expressiva, evoca camadas de sentido que se entrecruzam como trilhas harmônicas do cosmos.


Sua sobrevivência até hoje demonstra que o Renascimento ainda nos fala — talvez porque o madrigal preserva algo essencial: a tentativa de unir palavra e som para fazer emergir, ainda que por um instante, uma verdade sensível sobre a vida, o amor, o tempo e o mundo.


  • “Il bianco e dolce cigno” (Jacques Arcadelt)




  • “Now is the Month of Maying” (Thomas Morley)


 
 
 

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