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O Sujeito e o Capital: Do Psicótico Kantiano ao Esquizóide Deleuziano

  • carlospessegatti
  • 3 de nov.
  • 4 min de leitura
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Uma leitura crítica sobre as metamorfoses do sujeito moderno — da razão à fragmentação desejante — e sua funcionalidade ao sistema neoliberal


1. O Sujeito Psicótico de Kant: o aprisionado da Razão Pura

Em Kant, o sujeito é concebido como a instância racional que organiza a experiência do mundo. É o “sujeito transcendental”, estruturador das percepções e responsável por dar sentido à realidade. Tudo o que é conhecido passa por suas categorias a priori — tempo, espaço, causalidade, unidade, entre outras. Mas há, dentro dessa estrutura racional, uma consequência paradoxal: ao tentar construir uma razão pura, autônoma e universal, Kant acaba por isolar o sujeito em um mundo interno, desconectado da experiência concreta e da alteridade.


Esse isolamento — simbólico e epistemológico — faz com que o sujeito kantiano possa ser visto, em uma leitura posterior, como “psicótico”: um ser que organiza o mundo segundo as leis da própria mente, recusando o caos da realidade empírica. Ele vive na rigidez da forma, no aprisionamento do “eu penso” como condição de toda experiência. Assim, o sujeito psicótico kantiano é o produto máximo da razão moderna: um sujeito que pretende dominar o real, mas que, nesse domínio, fecha-se sobre si mesmo e nega a alteridade — o Outro, o corpo, o desejo.


2. O Sujeito Neurótico de Freud: o conflito entre desejo e lei

Freud, ao romper com o ideal racionalista, descobre que o sujeito é atravessado por forças inconscientes, desejos reprimidos e conflitos pulsionais. O sujeito freudiano é neurótico porque vive tensionado entre o princípio do prazer e o princípio da realidade. Ele deseja, mas precisa recalcar, pois a cultura, a moral e a lei o impedem de satisfazer plenamente seus impulsos.


O resultado é o sintoma — o modo simbólico de o inconsciente dizer aquilo que o sujeito não pode admitir. Esse sujeito está estruturado na falta: é um ser desejante, mas interditado. A neurose é a expressão dessa estrutura — o preço que o homem moderno paga pela civilização. Diferente do sujeito kantiano, que se fecha em sua razão, o sujeito freudiano é atravessado por um Outro simbólico — a linguagem, a lei, o inconsciente. É um sujeito dividido, em permanente negociação entre o desejo e a proibição.


3. O Sujeito Esquizóide de Deleuze (e Guattari): o fluxo do desejo e o colapso da estrutura

Deleuze e Guattari, em O Anti-Édipo (1972), propõem uma revolução conceitual. Contra o modelo freudiano da repressão e do Édipo, eles defendem o “esquizo” como figura da produção desejante: um sujeito que não é reprimido, mas que flui, conecta-se e se desfaz continuamente nas redes de desejo. O “esquizo” não é o doente clínico, mas o símbolo do sujeito pós-moderno que rompe com as estruturas de representação (família, Estado, moral, inconsciente edípico).


Ele deseja sem centro, sem hierarquia, produzindo conexões múltiplas — máquinas desejantes que se acoplam a outras máquinas sociais, técnicas, corporais e econômicas. Nesse sentido, o sujeito esquizóide é um sujeito “livre”, mas essa liberdade se converte facilmente em dispersão. Ele não é mais o indivíduo racional de Kant nem o neurótico freudiano que sofre pela lei: é o sujeito fragmentado, nômade, hiperconectado — o que se aproxima muito da subjetividade neoliberal.


4. O Esquizo e o Capitalismo: a captura do desejo

A crítica que se faz — e que tem fundamento — é que o sujeito esquizóide, ao se definir pelo fluxo e pela conexão, acaba se tornando o ideal do capitalismo contemporâneo. O neoliberalismo não quer sujeitos disciplinados nem neuróticos culpados: quer sujeitos desejantes, que consumam e se reinventem constantemente.


O capitalismo, como apontam os próprios Deleuze e Guattari, “libera os fluxos de desejo” para depois reterritorializá-los em mercadorias. Ele estimula a multiplicidade, a criatividade e o hedonismo, mas tudo isso convertido em energia produtiva e capitalizável.


O esquizo, então, torna-se o protótipo do “sujeito de desempenho” (Byung-Chul Han): alguém que acredita ser livre, mas está aprisionado em uma lógica de autossatisfação e consumo incessante. Seu desejo é imediatamente capturado, transformado em demanda, em produto, em algoritmo.


5. Da Razão ao Fluxo — o Sujeito a Serviço do Capital

Kant criou o sujeito racional, fundamento da modernidade. Freud revelou o sujeito dividido, aprisionado entre desejo e lei. Deleuze libertou o desejo, dissolvendo o sujeito em fluxos e conexões. Mas o capitalismo soube capturar essa libertação e transformá-la em motor econômico.


O “sujeito esquizo” tornou-se a forma ideal de subjetividade neoliberal: flexível, produtivo, conectável, movido por desejos que nunca cessam. Enquanto o sujeito psicótico de Kant sonhava com o controle do mundo, e o neurótico freudiano sofria por não poder tê-lo, o esquizo deleuziano vive em meio à vertigem do excesso — crendo-se livre, mas servindo ao sistema que se alimenta justamente de sua constante produção de desejo.


Nota de Reflexão — por CALLERA

A metamorfose do sujeito moderno revela o próprio itinerário do Capital. O homem racional de Kant acreditava na universalidade da razão; o neurótico de Freud sonhava com a reconciliação entre o desejo e a lei; o esquizo de Deleuze dissolve-se em fragmentos, confundindo liberdade com fluxo.


O capitalismo percebeu nessa dissolução a oportunidade de ouro: transformar o desejo em mercadoria, o impulso em consumo, o eu em performance. O sujeito que antes buscava o sentido, agora busca a conexão — e confunde intensidade com existência.


O “esquizo” contemporâneo é o avatar do sistema: produtivo, inquieto, movido por múltiplos prazeres e múltiplas faltas. Talvez a verdadeira resistência consista em recuperar a lentidão, o silêncio e o pensamento — as formas esquecidas de liberdade interior.


“No ruído das conexões infinitas, o sujeito perdeu a escuta de si mesmo.

Talvez o futuro comece quando voltarmos a ouvir o silêncio.”

CALLERA

 
 
 

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