Parmênides, Empédocles e Anaxágoras
- carlospessegatti
- 16 de set.
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SÉRIE FILOSÓFICA: OS PRÉ-SOCRÁTICOS
Parmênides — O Ser Uno e Imutável.
Empédocles — Amor, Ódio e os Quatro Elementos.
Anaxágoras — O Nous e a Mente Cósmica.
“O que é, é; e é impossível que o não‑ser seja.” — Parmênides de Eleia
“Pelo Amor as coisas se unem; pela Discórdia se separam.” — Empédocles de Acragas
“Tudo estava junto; o Nous separou e pôs ordem.” — Anaxágoras de Clazômenas
Introdução
A passagem da mitologia para o logos nos séculos VI–V a.C. foi uma das mais radicalmente libertadoras transformações do pensamento ocidental: do universo povoado por deuses e providências, emergiu um campo de investigação onde a razão procurava causas, princípios e estruturas. Entre os primeiros pensadores que impulsionaram esse deslocamento destacam‑se Parmênides, Empédocles e Anaxágoras. Cada um deles, à sua maneira, colocou problemas fundamentais — ser versus aparição, unidade versus pluralidade, causa e ordem — que continuariam a reverberar ao longo da história do pensamento.
O texto a seguir oferece um percurso detalhado pela vida conhecida (e pela tradição) desses autores, expondo suas teses centrais, os argumentos que oferecem, as consequências filosóficas e as possíveis leituras contemporâneas.
Parmênides de Eleia — O Ser Uno e Imutável
Vida e contexto
Parmênides pertenceu à escola eleática, fundada em Velia (Eleia), no sul da Itália (Magna Grécia). As informações biográficas são escassas e fragmentárias: viveu entre os séculos VI–V a.C., e compôs um poema filosófico geralmente conhecido por Sobre a Natureza (Peri Physeos), do qual restam fragmentos citados por autores posteriores. A imagem tradicional apresenta‑o como um pensador que, por meio de uma via de raciocínio rigoroso, confronta a aparente pluralidade do mundo sensível.
A obra e a doutrina
Parmênides organiza seu poema em dois caminhos: a via da Verdade (alétheia) e a via da Opinião (dóxa). Pela via da Verdade, emprega uma argumentação racional para demonstrar que o Ser é uno, imutável, imortal e completo. Para Parmênides, o pensamento e o ser coincidem: não se pode pensar o não‑ser, nem falar dele; portanto, qualquer afirmação ontológica deve partir da necessidade do ser. As consequências lógicas são drásticas:
O movimento é ilusório, já que mover‑se implicaria passagem do ser para o não‑ser; isso é impossível.
A multiplicidade é aparente; o real é uma unidade contínua.
Na via da Opinião, Parmênides não rejeita o mundo dos sentidos como totalmente irrelevante, mas o trata como um campo de imagens e crenças enganosas, que devem ser distinguidas do que se alcança pela via do pensamento.
Argumentos e método
O recurso de Parmênides ao rigor lógico — provas por redução ao absurdo e análise das implicações conceituais do “ser” — faz dele um dos primeiros mestres da argumentação ontológica. Ele desloca a investigação filosófica do terreno narrativo e cosmológico para o terreno da coerência conceitual: o que é admissível pensar sobre a realidade.
Recepção e reflexões
A exclusiva valorização do Ser puro provocou reações: Heráclito afirmava a primazia do devir; os atomistas e posteriormente Aristóteles tentariam reconciliar permanência e mudança. Platão e Aristóteles herdarão o problema parmenidiano, formulando teorias de formas, substâncias e acidentes para explicar como a estabilidade e a mudança coabitam.
Empédocles de Acragas — Amor, Ódio e os Quatro Elementos
Vida e contexto
Empédocles nasceu e atuou em Acragas (a atual Agrigento), na Sicília, provavelmente por volta de 494–434 a.C. Figura híbrida: filósofo, médico, poeta e figura quase mística, Empédocles legou poemas em que entrelaça cosmologia e imagens religiosas (Sobre a Natureza e Purificações). Ao contrário de alguns pré‑socráticos mais abstratos, Empédocles insiste em uma cosmologia de pluralidade permanente.
Doutrina central
Empédocles propõe quatro raízes eternas — terra, água, ar e fogo — que compõem todas as coisas. A mudança e a diversidade do mundo são explicadas não pela geração a partir do nada, mas pela recombinação dessas raízes sob a ação de duas forças cósmicas: Amor (Philia), que une, e Ódio/Discórdia (Neikos), que separa. Esse duplo princípio produz ciclos cósmicos em que as coisas se unem e se dispersam, gerando nascimento, vida e destruição sem violar a permanência das raízes.
Biologia, percepção e ética
Empédocles também é lembrado por reflexões sobre a origem da vida (quando combinações fortuitas das raízes formam órgãos e seres), e por ideias epistemológicas de que a percepção envolve afinidades entre o observador e o observado (uma espécie de relação de simpatia). Sua obra contamina filosofia com cosmologia poética, mas conserva uma preocupação causal: explicar fenômenos por princípios simples e estáveis.
Mito e personalidade
A biografia tradicional de Empédocles é colorida por lendas — desde a pretensão de poderes curativos até histórias apocalípticas sobre sua morte (lançado em Etna, segundo relatos tardios). Essas camadas míticas não anulam, porém, o núcleo racional de suas propostas: a tentativa de conciliar permanência e mudança por meio de forças que articulam elementos eternos.
Anaxágoras de Clazômenas — O Nous e a Mente Ordenadora
Vida e contexto
Anaxágoras nasceu em Clazômenas (Ásia Menor), por volta de 500 a.C. Mudou‑se para Atenas, onde lançou ideias que causaram grande impacto — e controvérsia. Foi associado ao círculo de Pericles; por suas explicações naturais sobre o céu e por negar a divindade tradicional dos astros, sofreu acusações de impiedade e acabou exilado em Lampsaco, onde veio a morrer.
Doutrina e conceitos-chave
A inovação central de Anaxágoras é a introdução do Nous — uma inteligência ou mente cósmica que é a causa do movimento e da ordenação do cosmos. Suas teses principais incluem:
Heterogeneidade original: antes da ordem, todas as coisas estavam misturadas — "tudo estava junto" — em uma massa infinita em que cada coisa continha uma porção de tudo.
Nous como causa motriz: uma entidade infinitamente fina, pura e dotada de inteligência inicia o movimento, separando e organizando as porções (ou sementes) em formas reconhecíveis.
Explicações naturalistas dos astros: o Sol e a Lua são corpos naturais (o Sol, uma massa incandescente maior que a Lídia etc.), o que contraria leituras míticas.
Significado epistemológico e cosmológico
Anaxágoras desloca o fundamento da explicação do sagrado para o racional, mas não reduz a ordem a causa puramente mecânica: o Nous é princípio ativo e intencional. Esse traço torna sua posição híbrida entre um racionalismo proto‑científico e uma noção de inteligência cosmológica.
Leitura contemporânea: Anaxágoras abre caminho para considerações sobre agentes ordenadores (metáforas de informação, campos organizadores ou princípios normativos) que hoje figuram em debates sobre complexidade e emergência — sempre com a ressalva de que sua concepção não coincide com modelos científicos modernos, mas dialoga poeticamente com eles.
Comparação e tensões entre os três
Unidade vs. Pluralidade: Parmênides propõe um Ser uno e imutável; Empédocles defende raízes permanentes que se combinam para formar a pluralidade; Anaxágoras toma uma massa inicial e explica a ordem por separação — três respostas convergentes para o problema do ser e do tornar‑se.
Causa e explicação: Parmênides privilegia a coerência conceitual (o que se pode pensar); Empédocles procura princípios materiais e dinâmicos (quatro elementos + duas forças); Anaxágoras introduz um princípio causal inteligente (Nous) capaz de iniciar o movimento.
Método: observação naturalista (Anaxágoras), poesia e mitopoética com rigor causal (Empédocles), racionalismo lógico e apodíctico (Parmênides). A combinação dessas estratégias formará o terreno em que a filosofia clássica (Platão e Aristóteles) tentará sintetizar explicações mais abrangentes.
Legado e relevância contemporânea
A obra desses pensadores permanece atual porque enuncia perguntas que ainda desafiam: como conciliar a estabilidade com o fluxo? Que tipo de explicação admite mudança sem prescindir da identidade? Qual o papel de um princípio ordenante — seja conceitual, cognitivo ou físico — na construção do cosmos?
Para a criação artística contemporânea, especialmente nas interseções entre música, ciência e filosofia que eu cultivo, esses autores oferecem materiais simbólicos e estruturais: do drone parmenidiano, passando pelos ciclos de atração/repulsão de Empédocles, até o princípio organizador de Anaxágoras — todos podem ser traduzidos em processos sonoros, algoritmos de síntese e narrativas de álbum.
Parmênides, Empédocles e Anaxágoras não são apenas nomes do passado — são nós de tensão que nos obrigam a repensar as categorias básicas do real. Seus fragmentos, poemas e doutrinas nos empurram a permanecer vigilantes quanto à diferença entre aparência e razão, entre mito e explicação, entre força e forma. E, ao mesmo tempo, fornecem um vasto repertório metafórico para artistas e pensadores que desejam fazer da filosofia uma matéria viva: para compor, teorizar ou sonorizar o universo.



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