Carlo Ginzburg - Histórias mínimas, sentidos universais
- carlospessegatti
- 15 de set.
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Carlo Ginzburg — Histórias mínimas, sentidos universais
Vida, método e “Il formaggio e i vermi”: como um moleiro friulano abriu uma janela para o imaginário popular do século XVI
1. Breve relato da vida e da obra
Carlo Ginzburg (n. 15 de abril de 1939, Turim) é um dos principais historiadores italianos do pós-guerra e uma figura-chave na definição e popularização da micro-história — abordagem que investiga casos singulares e bem documentados para extrair pistas sobre mentalidades, práticas e relações sociais mais amplas. Ginzburg é filho de Natalia e Leone Ginzburg; formou-se e doutorou-se em História (Universidade de Pisa) e ocupou cadeiras em instituições como a Universidade de Bolonha, a Scuola Normale Superiore (Pisa) e a University of California, Los Angeles.
Ao longo de sua carreira, produziu estudos que combinam uma investigação arqueológica de arquivos com uma escrita quase “detetivesca” — entre os trabalhos mais influentes estão I Benandanti / The Night Battles (sobre cultos agrários e práticas visionárias no Friuli), Il formaggio e i vermi / The Cheese and the Worms (o caso de Menocchio), Ecstasies: Deciphering the Witches’ Sabbath e ensaios metodológicos como Clues, Myths and the Historical Method.
A originalidade de Ginzburg não reside apenas no interesse pelos marginalizados, mas na sua capacidade de traduzir interrogatórios, confissões e rituais em interpretações que conectam cultura oral, leituras populares e redes de poder.
2. O lugar de Ginzburg na historiografia — a micro-história
A micro-história, gênero ao qual Ginzburg deu enorme visibilidade, não se limita a “biografar” um marginal: ela usa o extremo, o singular, para pensar processos culturais e sociais maiores — como mecanismos de controle, circulação de ideias, resistências e apropriações populares. Em síntese, Ginzburg mostrou como um caso aparentemente isolado (um moleiro que dizia coisas estranhas) pode iluminar as fricções entre cultura letrada e saberes do povo, e como a impressão tipográfica e a Reforma alteraram as possibilidades de circulação de ideias.
Resumo detalhado de O Queijo e os Vermes (Il formaggio e i vermi)
Contexto e origem do livro
Publicado em italiano em 1976 como Il formaggio e i vermi e traduzido depois para várias línguas, o livro é a síntese do método de Ginzburg: uma investigação exaustiva das atas inquisitoriais e das fontes locais para reconstruir o “cosmos” mental de um camponês do Friuli. A obra tornou-se um dos textos-modelo da micro-história e da história das mentalidades.
Quem foi Menocchio (Domenico Scandella) — dados biográficos essenciais
Menocchio (nome real Domenico Scandella; c. 1532–1599) era um moleiro de Montereale Valcellina (Friuli). Leitor autodidata, discutia muito com vizinhos e frequentava tavernas. Foi julgado pela Inquisição por suas opiniões heterodoxas — houve um primeiro processo em 1583 (com abjuração posterior) e um novo processo por relapso que culminou em sua condenação final, com execução em 1599. As transcrições de seus interrogatórios servem como evidência direta do que ele dizia e pensava.
O que Menocchio dizia — a cosmogonia do queijo e dos vermes
No cerne do livro está a narrativa cosmológica que Menocchio expõe em um interrogatório — a famosa imagem que dá título ao livro. Segundo ele, originou-se “uma massa” (como o leite que vira queijo) da qual nasceram vermes: esses vermes seriam os “anjos” e entre eles teria surgido também um ser chamado Deus; depois houve um conflito (Lúcifer etc.) e, finalmente, a criação dos homens.
A metáfora do queijo e dos vermes funciona para Menocchio como explicação da geração das coisas a partir de uma amálgama primitiva — uma imagem sincrética que mistura leituras populares, fragmentos de textos lidos, ditos orais e interpretações próprias. (Trecho reproduzido em traduções das transcrições de seu processo).
Metodologia de Ginzburg: como se reconstrói um “cosmos” a partir de um processo inquisitorial
Ginzburg parte das atas inquisitoriais — documentos que, embora tendenciosos (produzidos pelas autoridades), contêm fala direta do acusado, relatos de vizinhos, observações dos inquisidores e detalhes do conflito social. O procedimento historiográfico de Ginzburg consiste em:
Ler as confissões e depoimentos com atenção às repetições, metáforas e imagens espontâneas;
Cruzar essas falas com outras fontes locais (inventários, ofícios, leituras que circulavam na região);
Analisar como o inquisidor, com seu enquadramento e suas perguntas, “modela” as respostas e por vezes provoca contradições;
Ligar o micro-evento às transformações maiores — circulação de livros, controvérsias religiosas e mudanças econômicas. Assim, o interrogatório é tratado como arquivo vivo: não como espelho exato da mente do réu, mas como um espaço onde se revelam (e se confrontam) saberes, identidades e poder.
Principais teses de O Queijo e os Vermes
Intercâmbio entre cultura erudita e cultura popular: Ginzburg argumenta que o que Menocchio dizia não era puro folclore nem mera loucura: era fruto de um diálogo — muitas vezes assimétrico — entre leituras (alguns textos correntes, folhetos, bíblia em vulgata popular) e tradições orais. A cultura “alta” e a “baixa” circulavam e se contaminaram.
Imprensa e Reforma como motor de circulação de ideias: a disseminação de impressos e a reação confessional no século XVI ampliaram o repertório de palavras e imagens disponíveis aos leitores, mesmo entre os não eruditos. Ginzburg vê neste ambiente um fator que torna possível o aparecimento de um Menocchio.
O processo inquisitorial como espelho do poder e da assimilação: os interrogatórios mostram como a autoridade inquisitorial procura domesticar, corrigir e reinserir a dissidência dentro da norma; as reações e “gafes” de Menocchio expõem os limites dessa domesticação.
Recepção crítica e debates (resumido)
O Queijo e os Vermes recebeu aclamação por sua originalidade metodológica e escrita cativante, mas também críticas. Algumas vozes questionaram a extrapolação de um caso singular para conceitos gerais sobre a “cultura popular”: até que ponto Menocchio é representativo? Outros historiadores apontaram a necessidade de cautela diante das fontes inquisitoriais — elas contam uma história mediada. Debates posteriores (por exemplo, refutações e conjecturas sobre Ginzburg) enriquecem o campo ao problematizar hipótese por hipótese, sem, contudo, negar o impacto da obra.
Epígrafe sugerida para publicação
“O singular é a chave que abre o geral.” — (inspiração no método micro-histórico de Carlo Ginzburg)
Historiadores das Mentalidades e da Cultura Popular
Comparando Carlo Ginzburg, Jacques Le Goff, Philippe Ariès e Georges Duby
Historiador | Principais Obras | Objeto Central | Método / Abordagem | Contribuições | Diferenças em relação a Ginzburg |
Carlo Ginzburg (1939– ) | O Queijo e os Vermes, Os Andarilhos do Bem (I Benandanti), História Noturna, Mitos, Emblemas, Sinais | Vida das pessoas comuns; cosmologias populares; rituais camponeses; circulação de ideias heterodoxas | Micro-história: estudo minucioso de um caso singular (Menocchio, benandanti) para iluminar grandes questões culturais | Revelou a riqueza do imaginário popular e seu diálogo com a cultura erudita; influenciou gerações de historiadores | Foco em casos extremos e singulares, com método “detetivesco”; maior ênfase nos arquivos inquisitoriais |
Jacques Le Goff (1924–2014) | O Nascimento do Purgatório, A Civilização do Ocidente Medieval, Os Intelectuais na Idade Média | Estruturas simbólicas da Idade Média; Igreja; tempo, trabalho e memória | História das Mentalidades; leitura estrutural inspirada por Annales | Introduziu o conceito de “tempo da Igreja” vs. “tempo do mercador”; analisou imaginários coletivos | Mais macroestrutural que Ginzburg; preocupa-se com as grandes permanências |
Philippe Ariès (1914–1984) | História da Morte no Ocidente, História Social da Criança e da Família | Atitudes perante a morte; infância e família no Ocidente | Uso de iconografia, literatura e práticas sociais; análise de longa duração | Criou a “história das atitudes”; mostrou mudanças na sensibilidade ocidental | Ginzburg analisa o singular; Ariès investiga transformações coletivas de longa duração |
Georges Duby (1919–1996) | O Domingo de Bouvines, As Três Ordens, Guerreros e Camponeses | Estruturas feudais; relações entre classes; ideologia das ordens | Estruturalismo histórico; fontes literárias e institucionais | Contribuiu para o entendimento do feudalismo e da ideologia medieval | Mais atento à organização social global, enquanto Ginzburg busca fissuras locais e marginais |
Síntese interpretativa
Ginzburg abre uma fenda na história oficial, fazendo falar os silenciados.
Le Goff e Duby analisam estruturas de longa duração, ligados à tradição dos Annales.
Ariès revela a história da sensibilidade coletiva (infância, morte).
Juntos, eles constroem uma constelação que permite compreender o imaginário medieval e moderno tanto do ponto de vista macro (estruturas, mentalidades coletivas) quanto micro (a cosmologia de um camponês).
Historiadores das Mentalidades e da Cultura Popular
De Ginzburg a Le Goff, Ariès e Duby: diferentes formas de compreender o imaginário coletivo
A historiografia do século XX assistiu a uma virada profunda: os grandes feitos de reis, papas e generais deixaram de ser o único foco de investigação, abrindo espaço para a vida cotidiana, os rituais e as formas de pensar das pessoas comuns. Nesse processo, nomes como Carlo Ginzburg, Jacques Le Goff, Philippe Ariès e Georges Duby se tornaram referências centrais, cada qual com um olhar particular sobre o mundo medieval e moderno.
Carlo Ginzburg e a micro-história
Ginzburg tornou-se o símbolo da micro-história: a aposta em casos singulares — como o moleiro Menocchio, em O Queijo e os Vermes — para iluminar questões universais. Ao escavar as atas da Inquisição, ele revelou como indivíduos comuns, sem prestígio nem poder, podiam elaborar cosmovisões próprias, misturando cultura erudita, tradição oral e interpretações originais. A força de sua obra está em dar voz aos silenciados, construindo pontes entre a cultura popular e os mecanismos de controle e repressão.
Jacques Le Goff e as estruturas simbólicas
Le Goff, ligado à Escola dos Annales, voltou-se para as grandes estruturas simbólicas da Idade Média: o tempo da Igreja versus o tempo do mercador, a invenção do Purgatório, a memória e os intelectuais. Sua contribuição é mostrar a longa duração das mentalidades e como as práticas religiosas, econômicas e culturais moldaram o imaginário coletivo durante séculos. Enquanto Ginzburg olha para o singular, Le Goff se interessa pela arquitetura mental que sustentava sociedades inteiras.
Philippe Ariès e a história da sensibilidade
Ariès inaugurou a história das atitudes. Com sua investigação sobre a infância, a família e a morte, mostrou como a sensibilidade coletiva ocidental mudou ao longo do tempo. Suas análises da iconografia, dos rituais fúnebres e da vida familiar revelaram que até as emoções têm história. Em contraste com Ginzburg, que examina um caso isolado, Ariès busca compreender transformações culturais que atravessam séculos.
Georges Duby e a organização social do feudalismo
Duby dedicou-se ao feudalismo e à ideologia medieval, analisando a relação entre guerreiros, camponeses e clérigos. Obras como As Três Ordens ou O Domingo de Bouvines mostram como a sociedade se estruturava em ordens e funções, cada qual legitimada por discursos religiosos e políticos. Seu olhar é global e estrutural, interessado em como o poder e as hierarquias moldaram a vida coletiva.
Convergências e diferenças
Esses quatro historiadores se cruzam no interesse pelo imaginário medieval e moderno, mas divergem nas escalas de análise.
Ginzburg foca o detalhe, o caso extremo que ilumina tensões culturais.
Le Goff e Duby pensam em termos de estruturas sociais e simbólicas de longa duração.
Ariès revela as transformações lentas da sensibilidade coletiva.
Juntos, constroem uma constelação historiográfica que nos permite compreender tanto o microcosmo de um moleiro herege quanto as macroestruturas que definiram a mentalidade de uma época.
Epígrafe
“Entre o singular e o universal, a história das mentalidades revela o imaginário que sustenta sociedades inteiras.”



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